FORMOSA, FORMOSA,
FORMOSA É BEM FORMOSA
FORMOSA É BEM FORMOSA
TARUMIM TU SOIS FORMOSA
FORMOSA É BEM FORMOSA
FORMOSA, FORMOSA
FORMOSA É BEM FORMOSA
TARUMIM EU ESTOU COM SEDE
TARUMIM TU ME DÁ ÁGUA
TARUMIM TU SOIS MÃE D’ÁGUA
TARUMIM TU SOIS FORMOSA, FORMOSA
FORMOSA É BEM FORMOSA
RECORDANDO LUA BRANCA, TUPERCI E RIPI
O Cruzeiro – hinário, testamento e evangelho de Mestre Irineu – é o registro de sua caminhada telúrica-mística. É uma história que está sendo contada e, como tal, apresenta uma coerência sequencial. Portanto, recomendo a leitura das exegeses (interpretações) dos três primeiros hinos para que melhor compreendamos o começo dessa história épica.
Em Lua Branca, o jovem Irineu tem um vislumbre iniciático de uma verdade a professar, que se apresenta como missão espiritual. Deus manifesta-se como Deusa, a quem amorosa e intimamente chama de “Mãe”, a genitora de seu cristo interior através da força que a ela é peculiar – Espírito Santo… Daime. Mas aquele matuto, que a despeito do lume poético inato, dirige-se à divindade através do pronome “tu” – “Tu sois a flor mais bela aonde Deus pois a mão” (1: 5) -, em verdade ainda não conhecia, não apreciava e não compreendia a “flor cor de jaci”, o Sacramento e Alma Universal a desabrochar em sua alma individual (vide hino 2). Cabe a Mulher divina, Anima, despertá-lo de sua letargia, e o faz chamando à atenção no hino seguinte, Ripi: “(…) Se você não queria/Para que veio me enganar?” (3: 1) – Ìyá Ìyá, Nanã, a Mãe dos Orixás, manifesta-se a seu “preto”, como tio Paulo o chamava no Maranhão (BAYER NETO, 1992: 3). Descendente de escravos, Irineu nunca mais se apartaria de sua “Mamãe Velha” (hino 33), a mais antiga divindade feminina de seus ancestrais, sincretizada a Senhora Santana no hino 66, 5, São João, a “Mãe da Mãe” – uma das traduções de Ìyá Ìyá em iorubá -, a quem Maria tomava benção e Jesus, com sua roupa cor de cana, dava viva juntamente ao Pai Eterno – mui doce é o júbilo da água batismal, conhecimento transcendental.
Irineu, à atenção foi chamado. Despertado, tem sede de saber. Mas a quem recorrer? A Senhora de Mil Faces apresenta-se como Tarumim, “Formosa, formosa, formosa é bem formosa…” (hino 4) – “Mulher elegante que tem joias de cobre maciço. (…) Oxum limpa suas joias de cobre antes de limpar seus filhos” (VERGER, 2002: 174). A sede sapiencial será aliviada por aquela que é celebrada nos belos versos do Oseetura, mito de fundação iorubá, como a personificação do conhecimento (OYÈWÙMI, 2015: 57):
Damos o conhecimento para a fêmea, nossa
Ìyá
que encarna o conhecimento
Nós chamamos o conhecimento de Oxum, nossa
Ìyá
que encarna o conhecimento
Nos submetamos a
Ìyá
É
Ìyá
quem nos deu à luz
Antes de nos tornarmos seres humanos
Nos submetamos a
Ìyá
A fêmea deu à luz o soberano
Antes que o soberano se tornasse um Deus.
FORMOSA E AS “MATRIZES MARANHENSES DO SANTO DAIME”
Após publicar Ripi, fui alertado por uma condiscípula – demonstrando desconforto com as associações que fiz em relação ao candomblé – acerca do caráter único do Daime. No conjunto litúrgico, não se discute a singularidade da doutrina de Mestre Irineu. Mas há várias e fortes evidências que apontam para referências que o influenciaram na construção da própria liturgia, teologia e ética de seu “Cruzeiro universal”, expressão presente no hino 97, Centenário, que reflete justamente o verso do hino 102, 2, Sou Filho Desta Verdade: “O saber de todo mundo/É um saber universal/Aqui tem muita ciência/Que é preciso se estudar” (102:2). Um dos melhores trabalhos sobre um aspecto dessas influências, Matrizes Maranhenses do Santo Daime, foi publicado pela eminente pesquisadora da Ayahuasca, Beatriz Caiuby Labate, junto ao doutor Gustavo Pacheco, também antropólogo. Os autores citam vários elos entre o universo religioso maranhense e o Daime, contidos nas seguintes tradições: o baile de São Gonçalo, a festa do Divino Espírito Santo, o tambor de mina e a pajelança.
Do baile ou dança de São Gonçalo, cuja apresentação tive a sorte e o privilégio de assistir em São Vicente Férrer (vide foto adiante), Mestre Irineu tomou como inspiração os modelos de farda branca: “(…) Após seu retorno ao Maranhão, em 1957, Irineu modificou o modelo de farda até então usado, substituindo-o por um muito semelhante à farda do baile de São Gonçalo, na qual se destaca o uso de fitas coloridas e de uma rosa pelos homens, costume hoje abolido” (LABATE & PACHECO: 2004: 334-335). Os autores também ressaltam nesta “manifestação característica da Baixada Maranhense”, as valsas e marchas, “(…) Dois dos três ritmos usados nos rituais do Santo Daime” (pp. 331-332).
A seguir, as fotos. Primeira: com os participantes do baile de São Gonçalo (S. V. Férrer, 2005); segunda: Alfredo Gregório de Melo (hoje, Presidente do ICEFLU) e seu irmão Valdete (por volta de 1966) com Mestre Irineu e as fardas inspiradas no “baile” (os homens ainda usavam fitas e “rosa”, na citação de Labate e Pacheco).
Em relação à festa do Divino Espírito Santo, temos as seguintes palavras-conceitos, expressões e liturgia: “caixa” (Hino 100); “Império” (H. 105), “Divino Espírito Santo” (H. 93), e o “toque de alvorada” (H. 27) em que as “seis horas da manhã”, o “meio-dia” e as “seis horas da tarde” também são celebradas em “(…) Versos tradicionais de alvorada cantados pelas caixeiras” (pp. 330-331).
As duas últimas tradições, tambor de mina e pajelança, estão reunidas pelos autores sob o nome de “encantaria maranhense”, que tem em seu glossário palavras-conceitos do universo daimista, tais como: “tambor” (Hino 100); “doutrina” (Hinos 38 e 89, por exemplos), “maresia” (H. 37), “balanço” (H. 46), “firmeza” (H. 70), “tucum” (H. 108), “Surrupira” (H. 39), a expressão “beirando o mar” (H. 6) e, por fim, o centro maior de nossa atenção neste hino ora estudado: a “Mãe d’Água” (LABATE & PACHECO, 2004: 312 – 323).
NOTA: no subtítulo Outras Influências Maranhenses, os autores trazem uma informação muito interessante acerca do significado da palavra “equiô”, que aparece no hino 6 como “equiôr” (pp. 334-337). A Interpretação do hino 6, Papai Paxá está disponível neste site. Digite o nome do hino em “Pesquisar”.
A MÃE D’ÁGUA DA ENCANTARIA MARANHENSE
O subtítulo será baseado no belo livro Maranhão Encantado da antropóloga Mundicarmo Maria Rocha Ferretti, professora da Universidade Estadual do Maranhão e referência nacional por suas pesquisas sobre religiões afro-brasileiras e folclore maranhense, pois é plausível que Mestre Irineu quando criança ou adolescente tenha entrado em contato com as histórias sobre a Mãe d’ Água, considerando que “(…) A maioria delas faz parte da herança cultural legada por antepassados. E, apesar de antigas e de repassadas, geralmente, por via oral, continuam sendo ouvidas e apreciadas pelo povo maranhense, o que mostra que se adequam aos seus valores e à sua visão de mundo” (FERRETTI, 2000: 15).
A prefaciadora da obra, dra. Liane Trindade, assim define os “encantados”: “(…) São entidades espirituais, seres humanos ou animais, que no término de sua existência mortal tornaram-se imortais. Espíritos que vivem nas matas, nos rios e mares, baixam em terreiros e nos salões de curadores; convivem com mortais. Os encantados dialogam com os homens, não são sobrenaturais nem extraordinários, mas naturais, fazendo parte constitutiva da vida social…” (TRINDADE, 2000: 10).
Especificamente sobre a Mãe d’ Água, a autora esclarece: “Nos salões de curadores e em alguns terreiros de Mina da capital maranhense, onde são realizados também rituais de Cura (pajelança), o termo mãe d´água designa frequentemente o conjunto de entidades espirituais caboclas recebidas por um pajé ou curador, classificadas como linha de água doce” (FERRETTI, 2000: 58). O que é digno de atenção em relação ao hino Formosa é esta observação: “Mas os encantados, às vezes, revelam aos médiuns e frequentadores de terreiros algumas coisas sobre sua encantaria, através das letras das “doutrinas” por eles cantadas nos rituais” (p.85).
DA MÃE D’ÁGUA PAGÃ À MÃE D’ÁGUA CRISTÃ
Apesar de uma suposta influência que o encantado Mãe d’ Água possa ter dito na memória infante ou púbere de Mestre Irineu, sabemos sem sombra de dúvidas da persuasão que sua mãe Joana Serra, católica devotada, exerceu em seu primogênito. Aquele meninote agigantado, pobre e iletrado jamais poderia supor que estava destinado a ser o revolucionário porta-voz do “evangelho eterno” de Apocalipse 14, 6, livro que também profetiza: ““O Espírito [Santo] e a esposa dizem: “Vem!” Que aquele que ouve diga também: “Vem!” Que o sedento venha, e quem o deseja, receba gratuitamente água da vida” (Ap 22, 17). Simbolicamente, a esposa do Espírito Santo, obviamente, é Aquela que foi fecundada por Ele e que, dois mil anos depois manifesta-se a Irineu reafirmando a gratuidade do vegetal apocalíptico ao proclamar a seu pupilo os dois primeiros preceitos da genuína ética daimista: “não oferecer nem ganhar dinheiro”. A Mãe Divina é a Mãe d’ Água da Vida! Seu Filho já havia prometido: “Mas aquele que beber da água que eu lhe der nunca terá sede, porque a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte que jorra para a vida eterna” (Jo 4: 14).
Essa é a água que o “novo nome” do Apocalipse de João 3, 12, Juramidã, bebeu e nos disponibilizou a beber, para que possa ser saciada a sede de saber. Reitero o que escrevi na interpretação do hino Lua Branca: o grande Mestre fez uma promessa na última ceia, segundo a tradução da Bíblia de Jerusalém, 2002: “Isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado em favor de muitos. Em verdade vos digo, já não beberei do fruto da videira até aquele dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deus” (Mc 14:22-25). Recomendo ao leitor que leia ou releia com muita atenção os seis primeiros parágrafos da exegese de Lua Branca, em que faço uma análise teológico-cabalística desse mistério. O Daime é o “Vinho Novo”, da “Aliança” o Sangue, símbolo de Vida – Água da Vida.
“TARUMIM EU ESTOU COM SEDE”: O SÍMBOLO DA ÁGUA E A MÃE SAGRADA.
Ao longo do Evangelho de Juramidã tornar-se-á clara a grande sintonia didática entre Mestre Irineu e Jesus. Ambos ensinam através dos símbolos, metáforas e parábolas. A imagem gerada por uma alegoria é ilimitada não podendo ser confinada a racionalidade da mente. Segundo o ícone cabalista O Zohar: “(…) A imagem da Lei Escrita penetra na Lei Oral e a fecunda…” (BENSION, 2006: 156). Através da varinha mágica do verbo “cantar” – e abordaremos o fenômeno em momento oportuno – temos a transubstanciação em que a palavra do Mestre (o “corpo/pão”) se torna viva (o), compreensiva pelo sangue (o “vinho”), mistério da última ceia na qual foi prometido o Novo Fruto da Videira.
Sublinho, então, o recém citado dito de Jesus em João 4: 14: “(…) Porque a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte que jorra para a vida eterna”. Essa é uma passagem que o grande exegeta católico e especialista joanino Raymond Brown denomina Diálogo Com A Mulher Samaritana Junto ao Poço de Jacó (BROWN, 2020: 378. Vol. 1). Jesus domiciliado em Cafarnaum, às margens do lago de Genesaré ou mar de Tiberíades, voltava junto a seus discípulos à Terra dos Estrangeiros, Galiléia dos Gentios, saindo da Judeia, quando “(…) Fatigado da caminhada, Jesus sentou-se junto à fonte. (…) Uma mulher da Samaria chegou para tirar água. Jesus lhe disse: “Dá-me de beber!” (Jo 4: 6-7). Antes de nos aprofundarmos nessa belíssima história, convém estudarmos especificamente a ligação entre o símbolo da fonte/poço e o divino feminino.
A FONTE E O POÇO
Usarei duas obras excelentes como referência: Símbolos da Transformação de C. G. Jung, e o tratado A Grande Mãe escrito por seu discípulo Erich Neumann. “A Grande Deusa é a unidade caudalosa da água primordial subterrânea e celeste… A ela pertence todo tipo de água – arroios, nascentes, lagos e fontes…” (NEUMANN, 2021: 219). Segundo Jung, “O significado maternal da água é um dos símbolos mais claros na esfera da mitologia” (JUNG, 2011: 258). E Sêneca, ciado por Jung, filosofa: “Onde quer que das profundezas brote uma água, ali se ergue um altar” (p. 96). O tema “profundezas” foi abordado em Ripi, cuja tradução do tupi significa “fundo e profundidade”, sendo o referido hino 3 um convite a esse aprofundamento disponibilizado pela divina água vertida por Tarumim (hino 4), o Espirito materno que denunciou a ignorância em Tuperci, chamou à atenção em Ripi e lhe abriu a visão em Formosa (“formosa!”), pois tendo em conta o aspecto ginecocrático do Daime, “A mulher é, assim, a vidente primordial, a Senhora das Águas disseminadora da sabedoria, oriundas das profundezas; das Fontes murmurantes e das nascentes, pois “o” – ou, antes, um “pronunciamento primordial da vidência é a linguagem da água” (NEUMANN, 2021: 292).
Sempre tendo em vista o verbo de Formosa, voltemos ao estudo da passagem escriturística Diálogo Com a Mulher Samaritana Junto ao Poço de Jacó, usufruindo do grande legado exegético do dr. Raymond Brown (1928 – 1998) e seu monumental Comentário ao Evangelho Segundo João, uma obra-prima de 1700 páginas dividida em dois volumes. Em relação ao subtítulo, na mensagem do evangelista, fonte e poço se confundem (BROWN, 2020: 383. Vol. 1). Erich Neumann corrobora em nível simbólico a imiscuição, considerando o poço a porta de entrada “(…) Para o reino da terra-mãe…”, e a fonte “(…) O motivo do ascender, do irromper, relacionado ao nascer e à movimentação criativa…” (NEUMANN, 2021: 61).
O DOM DE DEUS E A ÁGUA VIVA
Tornando a João 4: 6-7, Jesus fatigado e sedento, pede água à mulher samaritana; diga-se de passagem, marginalizada por sua nacionalidade, gênero e status marital – era considerada imoral por ter sido desposada por cinco homens (Jo 4, 18). Nessas condições, ela se surpreende com a abordagem do Mestre – sempre quebrando tabus sociais -, e o questiona a respeito. Então, ele responde: “Se conhecesse o dom de Deus e quem é que te pede de beber, por tua vez lhe pedirias e ele te daria água viva” (Jo 4, 10). No versículo há uma clara associação entre “dom de Deus” e “água viva”; pois, “No judaísmo, duas das expressões usadas por Jesus, “o dom de Deus” e “água viva”, eram usadas para descrever a Torá” (BROWN, 2020: 391. Vol. 1). O Livro do profeta Isaías, anuncia: “Ah! Todos que tendes sede, vinde à água” (Is 55: 1). Provérbios 13: 14 nos diz que, “O ensinamento do sábio é fonte de vida para afastar as ciladas da morte”, pois “As palavras de homem são águas profundas, a fonte de sabedoria é manancial que jorra” (Pr 18: 4) – é essa a sede de Irineu ao pedir “água”!
Voltando à cena do Evangelho de João, em relação à “água” do poço de Jacó, Jesus atualiza a doutrina patriarcal da Torá ao dirigir palavra à mulher ímpia: “Todo aquele que beber desta água terá sede outra vez. Mas todo Aquele que beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede. Ao contrário, a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água que salte para a vida eterna” (Jo 4, 13. Tradução usada por Brown).
CONCEITOS DE ÁGUA VIVA
Abrindo o leque exegético, “Água Viva” ou “Água da Vida” significa: “vida eterna”, “graça santificante”, ‘revelação ou ensino de Jesus”, “Lei”, “Espírito comunicado por Jesus”, “águas purificadoras” (BROWN, 2020: 394-395. Vol. 1).
O DOM DE DEUS, A ÁGUA E O ESPÍRITO
A Água traz o “dom”: “A expressão “dom de Deus” no v. 10 [Jo 4] era um termo cristão muito antigo para o Espírito Santo… O dom do Espírito era uma marca dos dias messiânicos…” (BROWN, 2020: 395. Vol. 1). Redivivos com Juramidã e o Paracleto (Consolador), pois o Mestre Galileu na mesma ocasião em que fez a promessa do Novo Fruto da Videira (Mc 14: 22-25), sob o manto da lua cheia que iluminava a última ceia, também vaticinou: “Mas o Paráclito, o Espírito Santo que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará tudo e vos recordará tudo o que vos disse” (Jo 14: 26). Assim sendo, em intima ligação com o mistério da Água da Vida, no hino Flor das Águas, Juramidã parafraseia Jesus em seu famoso colóquio com Nicodemos: “O vento [Sopro, Espírito] sopra onde quer e ouves o seu ruído, mas não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que nasceu do Espírito” (Jo 3: 8); porque “ (…) Quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus” (Jo 3: 5). Cumprindo as profecias apocalípticas, o Chefe Estrangeiro (Galileia dos Gentios) de Maria Damião 46, 8, que assina o “evangelho eterno” (Ap 14: 6) com seu “novo nome” (Ap 3: 12) e ministra um “cântico novo” (Ap 14: 3), replanta a doutrina da Água da Vida: “Flor das águas/Da onde vem para onde vai/Vou fazer a minha limpeza/No coração está meu pai” (126: 1). O que está em consonância com o estudo citado no parágrafo anterior: a Água da Vida é considerada uma “água purificadora” (BROWN, 2020: 395. Vol. 1). Mais: segundo a ótima tradução e comentário do autor; repito, um grande especialista em João, “Se a água salta para a vida eterna [Jo 4: 14], em outro lugar (6, 63) ouvimos que ela é o Espírito que dá vida” (P. 395). Flor das Águas é o Espírito que sacia a sede de Irineu já em Formosa, e o catapulta (“faz saltar”) ao Reino da Eternidade, atualizando e corrigindo a esdrúxula doutrina neotestamentária do arrebatamento corpóreo: “Subi, subi, subi/Subi com alegria/Quando eu cheguei nas alturas/Encontrei com a Virgem Maria” (120: 2). Claro, o Espírito é indissociável da daquela que, personificada em Maria, o recebeu em Nazaré (Lc 1, 35) – Mãe formosa da família sagrada!
A ÁGUA, O ESPÍRITO E A VERDADE
Chamo a atenção para este mistério do Evangelho de João: Jesus ensina a doutrina da Água (Espírito) a Nicodemos no capítulo 3 e continua a ensinar quando encontra a samaritana no capítulo 4, o subsequente. A ela dirige estas palavras: “Todavia, é vinda a hora e agora está aqui quando os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em Espírito e verdade” (Jo 4: 23); e na sequência, arremata: “Deus é Espírito, e os que o adoram devem adorar em Espírito e verdade” (Jo 4: 24). A mulher responde a Jesus: “Eu sei que há de vir o Messias. Quando ele vier nos explicará todas essas coisas” (Jo 4: 25). Jesus, então, confidenciou: “Sou eu, o que fala contigo – eu sou ele” (Jo 3: 26). Juramidã vem “explicando” (esclarecendo) e legitimando esses mistérios da salvação por apresentar e autenticar sua “memória divina”: “Sou filho desta verdade/E meu pai é São José” (104: 3).
Conseguinte, acerca deste ensinamento citado a pouco, “Deus é Espírito, e os que o adoram devem adorar em Espírito e verdade” (Jo 4: 24), Juramidã – com a força da Água que é Espírito – exulta em um cântico vigoroso e jubilante: “Deus divino Deus/Soberano luz de amor/É o poder universal/É a força superior” (87: 1). A impessoalidade de Deus (Espírito) sintetizadas em duas palavras: luz e amor. O que está, novamente, em sintonia com os escritos atribuídos a João, desta feita em relação às epístolas: “Deus é Luz” (1 Jo 1: 5) e “Deus é Amor” (1 Jo 4; 8). A Luz fez-se carne em um homem, “Eu sou a luz do mundo” (Jo 8: 12) – “Eu sou a luz iluminante/Que ilumina o mundo inteiro” (Maria Damião 18: 1); “Pois Deus amou tanto o mundo, que entregou seu Filho único, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus não enviou o Filho ao mundo para julgar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3: 16-17) – “Eu sou um mensageiro/Com a luz que Deus me dá/A luz é para nos todos/Aqueles que procurar” (M. D 18: 2); “O vosso filho está no mundo/Com suas ovelhas/Ele é bom pastor…’ (48: 2), arremata sem muito arrodeio, replantando a Parábola do Bom Pastor (Jo 10: 1-18), o discípulo primogênito de Raimundo Irineu Serra, Germano Guilherme. A lembrança do “maninho”, o primeiro a reconhecer o Cristo em Irineu e cuja boa-nova foi considerado por seu mestre como o ‘Hinário da Rainha da Floresta”, traz o Evangelho do “Gêmeo” (Tomé), o Apóstolo da Gnose: “Disse-lhe Jesus: Já não sou teu Mestre uma vez que bebeste e te inebriaste na fonte borbulhante donde eu próprio jorrei” (Dito 13, tradução de Jean-Yves Leloup).
FORMOSA E O EVANGELHO DE TOMÉ (DITO 74)
A gnose é o primordial batismo cristão, mergulho na consciência. Em relação ao mistério da fonte-poço, “Um dos símbolos cristãos primitivos associados ao batismo é o ato do cervo bebendo água corrente (viva) (Sl 42); e, deveras, a cena com a samaritana junto ao poço aparece na arte de antiga catacumba como símbolo do batismo… Assim, há uma boa possibilidade de que um tema batismal estava aludido neste discurso” (BROWN, 2020: 396. Vol. 1). Sobre o batismo original, faz-se necessário esclarecer nas palavras do filósofo e escritor Huberto Rohden: “João não mergulhava crianças, porque não vigorava ainda a ideologia de um tal “pecado original”, que também Jesus ignorava. (…) O mergulho, como diz Paulo de Tarso, simboliza a morte do velho homem adâmico e o nascimento do novo homem crístico…” (ROHDEN, 1990: 79). Isso posto, vamos ao dito 74 do Evangelho de Tomé, na tradução de Huberto Rohden:
Disse Ele:
Senhor, muitos rodeiam a fonte,
Mas ninguém entra na fonte.
O filósofo comenta: “Já no início da Era Cristã, lamentava o grande Orígenes, de Alexandria, que muitos falassem do Cristo e poucos se cristificassem. Muitos sabem que existe uma fonte de águas vivas, poucos bebem dessa água. (…) Ninguém pode fazer transbordar as suas águas, se não tiver plenitude delas. Somente a plenitude interna é que pode trasbordar externamente. Somente a consciência mística pode transbordar em vivência ética” (ROHDEN, 2005: 103). Ratificando a inter-relação entre a “fonte” e o “poço”, segue o referido dito tomesiano, agora na tradução do teólogo e filosofo dr. Jean-Yves Leloup (LELOUP, 1997: 33).
O Senhor disse:
Muitos permanecem em volta do poço,
Mas ninguém está disposto a descer nele.
Ao redor do poço olhamos para o fundo e vemos – com os olhos materiais – apenas os reflexos de nossas imagens temporais. Descer faz-se mister. Na profundidade vemos – com o olho espiritual – a fonte da eternidade. Sacia-se a sede, aniquila-se a dúvida e o medo, revoga-se o degredo! Amém.
NOTA: reitero a observação feita na interpretação do hino 2, Tuperci: Mestre Irineu VETOU o registro de crianças com nomes de entidades daimistas ou supostas entidades que, na verdade, revelam-se nomes do idioma de Juramidã, tais como: tuperci, ripi, barum, marum, etc… Quanto às verdadeiras entidades, particularmente Tarumim, Soloína e congêneres, creio que devam permanecer no lugar que lhes são peculiar: o âmbito do sagrado imaculado. Esse esclarecimento não é especificamente uma censura a quem quer que seja, mas o repasse de uma instrução do fundador do Daime.
FOTO INICIAL (via Altino Machado): vista aérea do CICLU-Alto Santo, matriz do Daime (sem filiais) com a sede às margens da famosa lagoa celebrada na voz do profeta Raimundo Gomes da Silva: “Eu vivo aqui cantando/Na beira desta lagoa/O divino pai eterno/Só me traz é coisa boa” (O Ramalho, 22: 2).
REFERÊNCIAS:
BAYER NETO, Eduardo. Século XIX: No Maranhão, a Aurora da Vida do Mestre. Jornal O Rio Branco, Rio Branco, AC, p. 3, 15 de dezembro de 1992. Suplemento Especial O Centenário de Juramidã;
BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém: nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002;
BENSION, Ariel (Org.). O Zohar: O Livro do Esplendor. São Paulo: Polar, 2006;
BROWN, Raymond. Comentário ao Evangelho Segundo João Volume 1 (1-12): introdução, comentários e notas. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2020;
FERRETTI, Mundicarmo Maria Rocha. Maranhão Encantado: encantaria maranhense e outras histórias. São Luís: UEMA, 2000;
JUNG, Carl. Gustav. Símbolos da Transformação: análise dos prelúdios de uma esquizofrenia. 7ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011;
LABATE, Beatriz Caiuby; PACHECO, Gustavo. Matrizes Maranhenses do Santo Daime. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO, Wladimyr Sena (Orgs.). O Uso Ritual da Ayahuasca. 2ª ed. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2004.
LELOUP, Jean-Yves (tradução e comentários). O Evangelho de Tomé. 8ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997;
NEUMANN, Erich. A Grande Mãe: um estudo histórico sobre os arquétipos, os simbolismos e as manifestações femininas do inconsciente. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix, 2021;
OYÈWÙMI, Oyèrónké. What Gender is Motherhood? Changing Yorùbá Ideals of Power, Procreation And Identity In The Age Of Modernity. New York: Palgrave Macmillan, 2015;
RODHEN, Huberto. A Mensagem Viva do Cristo – Novo Testamento. São Paulo, SP: Martin Claret, 1990;
_______________. O Quinto Evangelho: A Mensagem do Cristo – Apóstolo Tomé. São Paulo, SP: Martin Claret, 2005;
TRINDADE, Liane. Prefácio. In: FERRETTI, Mundicarmo Maria Rocha. Maranhão Encantado: encantaria maranhense e outras histórias. São Luís: UEMA, 2000;
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo. 6ª ed. Salvador: Corrupio, 2002.