“Aqui eu toco meu tambor…”: a história da parábola do hino 100

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EU SOU FILHO DA TERRA

VIVO NAS MATAS SOMBRIAS

IMPLORANDO AO PAI ETERNO

E A SEMPRE VIRGEM MARIA

 

AQUI EU TOCO O MEU TAMBOR

E NAS MATAS EU RUFO CAIXA

TODO MUNDO VAI ATRÁS

PROCURANDO MAS NÃO ACHA

 

TODO MUNDO É SABIDO

E O SABER DEUS É QUEM DÁ

SEGUINDO NA LINHA DIREITA

É MUITO FÁCIL DE ENCONTRAR

 

NOTA: o estudo diz respeito apenas a segunda estrofe. Quando alcançar o hino 100, publicarei uma exegese completa. Antes, porém, preciso introduzir o estudo de uma ciência esotérica que será apresentada na interpretação do hino 9, Mãe Celestial, e do hino 10, Eu Devo Pedir.  Está disponível no site a interpretação dos oito primeiros hinos, além do hino 14. Basta digitar em “pesquisar”. Por exemplo: hino 2, etc.

 

INTRODUÇÃO

À primeira vista, muito naturalmente, somos levados a acreditar que Mestre Irineu esteja se referindo ao instrumento musical. Mas entre antigos seguidores afirma-se, categoricamente, que não. Inclusive, não se tem conhecimento de que o Mestre o tenha tocado na sede de trabalhos, autorizando sim, no aparato musical, o pandeiro como objeto de percussão, tendo em seu sobrinho João Serra – considerado um exímio pandeirista –  o tocador “oficial” (CARIOCA, 2000: 58) No imenso e maravilhoso baú de histórias do Mestre contadas por seus contemporâneos, a amiga e antiga seguidora Nazaré Granjeiro revelou-me que sua mãe, dona Adália, filha de Antônio Gomes da Silva e zeladora de seu hinário Amor Divino, contou que Mestre Irineu possuiu um tambor, que recebeu de presente em sua viagem ao Maranhão em 1957, guardando-o no paiol de sua propriedade sem jamais o ter levado para a sede. Até hoje no CICLU-Alto Santo, o tambor não faz parte dos instrumentos musicais.

 

A SACRALIZAÇÃO DO TAMBOR NOS CULTOS DE MATRIZ AFRICANA

Baseado no clássico Orixás do etnólogo e babalaô Pierre Fatumbi Verger,  visitante contumaz dos terreiros africanos, após a manufatura seguindo uma rígida tradição, “Tais instrumentos foram  batizados e, de vez em quando, é preciso manter sua força (o axé) por meio de oferendas e sacrifícios. Os atabaques desempenham um duplo papel, essencial nas cerimônias: o de chamar os orixás no início do ritual e, quando os transes de possessão se realizam, o de transmitir a mensagem dos deuses” (VERGER, 2002: 72). Nem todos podem se aventurar a tangê-los; “Somente o “alabê” e seus auxiliares, que tiveram uma iniciação, têm o direito de tocá-los” (Ibidem).

Os atabaques não são todos iguais. Existe uma fina ciência na fabricação desses instrumentos, na forma de tocar, decorar e na especificidade de cada um em relação a determinado orixá; por exemplo: na África, o ritmo bàtá é utilizado no culto a Xangô, o ritmo “ibi” é dedicado a Oxalá, e o ritmo “ijexá” utilizado nos cultos de Oxum, Ogum, Oxalá e Logunedé (VERGER, 2002: 72). E  no Tambor de Crioula maranhense, “Observam-se, entre outros fatores, as fases da lua para escolher o momento certo para retirar a madeira para confeccionar os tambores” (BARBOSA, 2016: 33)

Antigos pesquisadores do Daime registram experiências de Mestre Irineu com os tambores (cultos) maranhenses; no profano e religioso Tambor de Crioula (BAYER NETO, 1992: 3) e no sagrado Tambor de Mina (LABATE & PACHECO, 2004: 313-314), nos quais os tambores (instrumentos) desempenham papel crucial nas manifestações mediúnicas. Segundo Verger (p.70), referindo-se aos cultos candomblecistas, “O transe é provocado pelo ritmo dos tambores”. Cogito sem veredicto: baseado em suas vivências maranhenses e percepções espirituais, ao não introduzir o tambor no Daime, Mestre Irineu estaria evitando uma “mistura de linhas”?

Na linha tradicional do Daime não há incorporações como a entendemos comumente; ao “transe” daimista denomina-se “irradiação”. Segundo o tratado biográfico Eu Venho de Longe, “Esta observação é pertinente à discussão sobre o pouco espaço existente na doutrina original de Mestre Irineu para os transes de incorporação, apesar de sua frequência nas manifestações afro-maranhenses pelas quais foi tão influenciada. O que encontramos no Daime é a “irradiação”, termo empregado para certo tipo de transe em que o sujeito não perde completamente a sua noção de si ou a memória do ocorrido durante sua vigência” (MOREIRA & MACRAE, 2011: 273).

NOTA: sobre as influências das “manifestações afro-maranhenses” citadas pelos autores, recomendo o ótimo capítulo Matrizes Maranhenses do Santo Daime, de Beatriz Caiuby Labate e Gustavo Pacheco, presente no livro O Uso Ritual da Ayahuasca, organizado por Beatriz Caiuby Labate e Wladimyr Sena Araújo (Vide Referências ao final do texto). Também recomendo minha interpretação do hino Ripi, na qual espero ter demostrado uma nítida intercessão entre a teologia e preceitos do candomblé e o Daime, que vão além da questão da “incorporação” (vide estudo no link ao final do texto).

 

TAMBORES E “CAIXAS”: ELEMENTOS DA TRADIÇÃO RELIGIOSA MARANHENSE

As diferentes estrofes dos hinos que perfazem as “escrituras daimista” são como os versículos da Torá: “(…) Assim como o martelo origina diferentes chispas, um único versículo bíblico traz à luz diferentes interpretações” (RISKIN: 2012: 23). Essas podem ser objetivas e subjetivas. Objetivamente, baseado no que estudamos acima, neste hino a palavra ‘tambor” não se refere ao instrumento musical. Antes de revelar o contexto histórico da expressão “Aqui eu toco meu tambor e nas matas eu rufo caixa…”, subjetivamente, proponho que Mestre Irineu também esteja fazendo alusão a seu culto religioso, influenciado pela tradição maranhense que, por exemplo, define o Tambor de Crioula ou, simplesmente, o Tambor como “(…) Uma expressão afro-brasileira que envolve música e dança de roda” (BARBOSA, 2016:19). Já o Tambor de Mina é definido como “(…) Uma festa religiosa trazida pelos escravos, notadamente das Culturas Jeje e Nagô. Tem um ritual rico em cânticos e danças envolvendo os participantes…” (FIGUEIREDO, 2003: 37).

Baseado em sua ancestralidade e em elementos comuns a seu ritual como a “música e dança de roda” e os cânticos presentes nos tambores maranhenses, estaria Mestre Irineu, de forma enigmática e espirituosa, considerando o Daime uma espécie de tambor (culto) ao proclamar “Aqui eu toco o meu tambor…”? Estaríamos então, diante do “Tambor de Mestre Irineu”, haja vista que, por exemplo, no Maranhão, “Muitas vezes o tambor é chamado pelo nome do líder da brincadeira, aquele que é o guardião da parelha de tambor, por exemplo, Tambor de Leôncio, Tambor de Apolônio, e muitos outros” (BARBOSA, 2016: 20).

“…E nas matas eu rufo caixa”: é possível cogitar uma influência das “caixas”, tambores tocados pelas “caixeiras”, mulheres ornamentadas que acompanham os Cantos de Louvor ao Divino Espírito Santo,  festa do catolicismo popular tradicional no Maranhão? (FIGUEIREDO, 2003: 69). De Maria e a pomba do Jordão à Rainha da Floresta, o sagrado feminino manifestando o Espírito Santo, que tem n’O Cruzeiro o seu evangelho e em Mestre Irineu o grande arauto!

 

A PARÁBOLA DO TAMBOR: A SOM DO JAGUBE

Chegamos, enfim, ao âmago deste estudo, o contexto histórico e a interpretação literal do segundo versículo do capítulo 100 do Evangelho de Juramidã, o hino Eu Sou filho da Terra.

 

AQUI EU TOCO MEU TAMBOR

E NAS MATAS EU RUFO CAIXA

TODO MUNDO VAI ATRÁS

PROCURANDO MAIS NÃO ACHA

 

A história foi gentilmente repassada pelo amigo Guido Carioca, filho de Júlio Carioca, conhecido contemporâneo de Mestre Irineu, que, à época, tomava parte no Estado Maior e ocupava o cargo de zelador do Conselho Comunitário na organização institucional e administrativa do CICLU (CARIOCA, 2000, 88).

“Seu Chico Granjeiro foi o segundo ou o terceiro feitor de Mestre Irineu, depois que o Mestre parou de fazer Daime. Teve o João Pereira e umas pessoas antigas aí. Seu Chico Granjeiro foi destacado assim que chegou. O Mestre já olhou pra ele e entregou todo o serviço da mata pra ele cuidar. Aí o seu Chico Granjeiro disse: – Mas Mestre… Aí o Mestre disse: – O senhor já chegou achando Jagube, chegou achando Folha. E o papai [Júlio Carioca] quando conheceu o seu Chico Granjeiro se apegou muito com ele. Chegou até a passar de 15 dias na casa dele. Se apaixonou pelo seu Chico Granjeiro. Passaram muito tempo juntos, muitas conversas entre os dois sobre essas coisas. Daí um dia, o papai em uma dessas conversas com Mestre Irineu, disse: – Mestre, eu queria que o senhor me ensinasse a encontrar um Jagube na mata, porque eu vejo o compadre Chico com muita facilidade, ele vai lá e encontra, e eu tenho muita dificuldade. Queria que o senhor me ensinasse. Aí o Mestre disse: – Seu Júlio, é muito fácil. As pessoas é que fecham os olhos pra Ele, mas Ele não fecha os olhos pra nós, não. Mesmo que a pessoa não veja, Ele até faz um sinal na mata, seu Júlio. Você vai andando na mata procurando pra cá, procurando pra lá, aí escuta um toque lá longe: páaaaa, páaaaa, páaaaa… Aí você tem que ver da onde veio esse som. Se você procurar da onde é que veio, a direção, você vai… Mas tem que estar preparado, seu Júlio! Para entrar na mata tem que estar preparado, saber entrar na mata… aí Ele conversa com o camarada. Entra na mata e não pede nem licença a Rainha da Floresta, entra de qualquer jeito, não se preparou [dieta]… como é que vai escutar o som, escutar o toque que Ele dá? Se escutar e seguir a direção vai lá onde Ele está. Nessa época que o papai perguntou para o Mestre, ainda não tinha nem esse hino recebido, foi mais lá pra frente. Quando o Mestre apresentou esse hino, o papai estava na sede. Aí ele disse: – Ah, é esse toque, o toque que o Mestre falou pra mim, agora fiquei sabendo… O papai se despertou: Aqui eu toco meu tambor e nas matas eu rufo caixa…. Parábola que é preciso se estudar”. (Em novembro de 2022, via WhatsApp)

Nota: muito bonito o relato da grande amizade entre Júlio Carioca e Francisco Granjeiro, quando o senhor Guido diz que “papai se apaixonou pelo seu Chico Granjeiro”. O que seu Júlio Carioca e Chico Granjeiro não sabiam, é que seus filhos Guido e Nazaré viriam anos mais tarde a se apaixonarem de fato, celebrando através do casamento, a união das duas famílias. Vida longa ao casal e gratidão pela amizade!

A seguir, reiteração e complementação do amigo Altino Machado, jornalista e membro do CICLU-Alto Santo há 40 anos, genro do senhor Sebastião Jaccoud, de quem ouviu muitas histórias, autor do clássico daimista O Terceiro Testamento, recebendo a honraria de ter o seu túmulo edificado na área de entrada para a sede de trabalhos.

“Aqui eu toco meu tambor e nas matas eu ruflo [utiliza o verbo ruflar] caixa… É que tem um período na força da lua nova, que o cipó, as pessoas ouvem ele bater, fazer som de tambor e ruflar de caixa, fazer tátátátá, tátátátá, tipo tarol, entende? Isso eu já ouvi essas histórias pelos antigos. Uma vez, eu conversando com o seu Jaccoud, ele disse que não fazia parte…e quanto ao hino, realmente não tem nada a ver com tambor, o tambor de couro, não, é o som que ele produz na mata, o cipó, o cipó jagube produz esse som na mata…” (Em abril de 2024, via WhatsApp).

 

APÊNDICES

Link da exegese do hino Ripi: https://evangelhodejuramida.com.br/hino-03-ripi/

A história desse hino também está disponível na categoria “História dos Hinos”: https://evangelhodejuramida.com.br/category/historia-dos-hinos/

 

ARTE: Thálita Vanessa Pinheiro

 

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Yêda (org.). Tambor de Crioula no Maranhão. Brasília, DF: IPHAN, 2016;

BAYER NETO, Eduardo. Século XIX: No Maranhão, A Aurora da Vida do Mestre. Jornal O Rio Branco, suplemento especial: O Centenário de Juramidam. Rio Branco, AC, 15 de dezembro de 1992;

CARIOCA, Jairo. Doutrina do Santo Daime: A Filosofia do Século. Rio Branco, 2000. Monografia;

FIGUEIREDO, José. Folclore no Maranhão: um guarnecer para todos. São Luís: [s.n.], 2003;

LABATE, Beatriz Caiuby; PACHECO, Gustavo. Matrizes Maranhenses do Santo Daime. In: LABATE, Beatriz Caiuby; ARAÚJO, Wladimyr Sena (orgs.). Uso Ritual da Ayahuasca. 2ª ed. Campinas, SP: Mercado das Letras, 2004;

MOREIRA, Paulo; MACRAE, Edward. Eu Venho de Longe: Mestre Irineu e Seus Companheiros. Salvador: EDUFBA, 2011;

RISKIN, Rabino Shlomo. Luzes da Torá. Vol. 1: Genesis. Sobre vida, amor e família. 2ª ed. São Paulo, SP: Sêfer, 2012,

VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo. 6ª ed. Salvador: Corrupio, 2002.

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