Hino 129 – Pisei Na Terra Fria

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INTRODUÇÃO E CONTEXTO HISTÓRICO DO HINO

No hino 52, A Febre do Amor, o Mestre poeta adjetiva seus hinos de flores. Eis a última de seu belíssimo buquê. Segundo a zeladora d’O Cruzeiro, Percília Matos: “Pisei na Terra Fria ele recebeu no final de 70, no mês de dezembro, depois do aniversário dele, no dia 17 ou 18” (REVISTA DO CENTENÁRIO, 1992: 24). Segundo o depoimento do senhor Wilson Carneiro aos editores dessa icônica publicação: “(…) Veio o hino que fala: ‘Me mandaram eu voltar/Eu estou firme, vou trabalhar…’. Ele ficou contente. Pouco tempo depois veio o Pisei na Terra Fria. Ele convocou uma reunião e esclareceu: – Esse hino não é só para mim. É para todo mundo. Todo mundo que nasceu, tem que morrer. Assim, ele confortou o povo” (p. 36).

Segundo o relato de Jairo Carioca, estes foram os últimos momentos de Raimundo Irineu Serra: “Naquela quarta-feira de 06 de julho, completaria a terceira sessão de cura, realizada pela Comissão em benefício do Mestre. Conta, dona Lourdes Carioca, que: ‘Iam muito mais do que nove pessoas, todos queriam rezar pelo Mestre. Na segunda sessão ele havia chamado um a um e perguntado quem havia visto o seu velório. Ouviu a resposta de um por um. Quando ficamos eu, comadre Peregrina, comadre Zacarias, Marta e Júlio Carioca, ele disse que a gente devia se conformar, que estaria perto de deixar a gente’. Assim aconteceu. Na manhã ensolarada do dia 6 de julho de 1971, por volta das 9 horas, o Mestre se despedia da Terra. Com uma forte dor, desfaleceu por cima da rede quando tentava urinar. Sustentado depois por Francisco Martins, que gritou pela presença da madrinha Peregrina, Irineu deu seus últimos suspiros, já com a vela na mão. O clamor e a tristeza tomavam conta da região. Em pouco tempo, a notícia ganhava terreno. O radialista Mota de Oliveira, uma das últimas pessoas curadas por suas mãos, anunciava o falecimento nas ondas da rádio Capital. A cidade de Rio Branco parava para ouvir a notícia. Era um dia triste para toda a irmandade do Daime. Um dia de céu claro, sem nuvens e de forte sol. Um dia para ficar na história” (CARIOCA, 2023: 236-37).

 

EXEGESE TEOLÓGICA

 

PISEI NA TERRA FRIA

NELA EU SENTI CALOR

ELA É QUEM ME DÁ O PÃO

A MINHA MÃE QUE NOS CRIOU

 

Esse versículo revisita e subscreve o hino 42, A Terra Aonde Estou.

“Pisei na terra fria…”: Fria pelo desamor, injustiça e indiferença, frutos da inconsciência: “A terra aonde estou ninguém acreditou…” (42: 1), pois segundo a tradução de João Ferreira de Almeida: “Em verdade vos digo que nenhum profeta é bem recebido na sua própria terra” (Lc 4: 24);

“Nela eu senti calor…”: “Dai-me amor, Daime amor…” (42: 1); afinal, o amor é uma febre… (hino 52).

 “Ela é quem me dá o pão, a minha mãe que nos criou”: “Dai-me o pão do Criador” (42: 1). Há o pão de trigo (material) e o do espírito (substancial). Ambos são benesses da Grande Mãe, manifestada na fertilidade da terra e no Espírito, de quem tem a guarda do mistério e a tutela:  “O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra…” (Lc 1: 35). Em nenhum versículo dos Evangelhos consta que esse poder dela tenha se retirado! A sombra evoca “(…) Seja a nuvem luminosa, sinal da presença de Iahweh… seja as asas do pássaro que simbolizam o poder protetor… e criador (Gn 1,2) de Deus” (BIBLIA de JERUSALÉM, 2002: 1787). Criar é educar: “A minha mãe que me ensinou/Que me deu este primor/Dai-me amor, dai-me amor/Dai-me o pão do Criador” (42: 2)…

 

A MÃE NA TERRA, A PRESENÇA (SHEKINAH) E A FORÇA

A chave cabalística – “Os apóstolos estão chegando/Para vir nos ajudar/Para firmar esta cabala/No mundo material (O Ramalho, 110: 3) – atende pelo nome de Shekinah, “A presença divina na terra, termo usado pelos rabinos para distinguir a experiência de Deus de um judeu da realidade inefável em si mesma. Os cabalistas viam a Shekinah como a décima Sephirah (esfera da Terra) e uma personalidade feminina…” (ARMSTRONG, 2007: 235)… Juntando as peças (nuvem = presença) deste quebra-cabeça divino, revela-se, traduzindo-se, o saber misterioso de Maria Damião 33, 1:  “A lua me apareceu/Por debaixo das nuvens [símbolo da Presença, Shekinah] /Eu pude compreender/Que é o poder de Jesus”, a quem pede: “Peço a vós que me dê força/Para eu combater com a matéria/Que meu espírito é do divino/E a matéria é da terra” (34: 7)…

 

A MINHA MÃE QUE NOS CRIOU

E ME DÁ TODOS ENSINOS

A MATÉRIA EU ENTREGO A ELA

E O MEU ESPÍRITO AO DIVINO

 

ECLESIASTES E MITO IORUBÁ DA CRIAÇÃO

A força que cria é a Presença que educa, se não nos tornamos filhos desnaturados quando o livre arbítrio é provado no caminho para o qual todo homem está destinado: “(…) O pó volte a terra de onde veio e o sopro volte a Deus que o concedeu. Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (Eclesiastes 12:7-8).

Tributemos as raízes africanas de Raimundo Irineu Serra através do orixá Nanã (Ìyá Ìyá), que o acompanhou desde a iniciação (vide hino 3), passando pelo mistério batismal sincretizada à senhora Santana (hino 66), findando com o mito genesíaco iorubá (hino 129), no qual a Mãe dos Orixás aceita colaborar com Oxalá para criar o homem, mas impondo uma condição: “Seu elemento, o barro, retornaria para ela após o período de passagem da criatura no aiê [mundo físico]” (MARTINS, 2008: 51).

 

 DO SANGUE DAS MINHAS VEIAS

 EU FIZ MINHA ASSINATURA

 O MEU ESPÍRITO EU ENTREGO A DEUS

 E O MEU CORPO À SEPULTURA

 

“Porque onde há testamento, é necessário que intervenha a morte do testador.” (Hb 9: 16). Segundo o Dr. Jack Miles: “A palavra grega martys, da qual mártir é derivada, significa “testemunha”. O mártir que sofre e morre por sua fé testemunha diante dos outros homens a profundidade de sua devoção a Deus” (MILES, 2002: 210).

O sangue é um símbolo universal da vida, e quem assina, testemunha a sua própria em sacrifício pela humanidade desumana, que destrata a Verdade por não a conhecer. Quando Ela se revela, tudo se apaga; quando se eleva, tudo se rebaixa; quando vive, tudo morre na feliz sorte de quem souber morrer antes da morte!

 

MEU CORPO NA SEPULTURA

DESPREZADO NO RELENTO

ALGUÉM FALA EM MEU NOME

ALGUMA VEZ EM PENSAMENTO ?

 

 JESUS, MESTRE IRINEU E A TRADIÇÃO RABÍNICA

“Alguém fala em meu nome…”. Jesus: “Onde quer que dois ou três se acharem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (Mt 18, 20).

A expressão “em meu nome” é composta por palavras doutrinais de Jesus replantadas neste último versículo do Evangelho de Juramidã, e remontam a tradição idiomática semítica e de ensino rabínico: “(…) A expressão idiomática “por amor de mim” é uma tradução da locução hebraica lishmi (em meu nome). É possível que em nosso dito [Mt 18, 20] também haja uma alusão a outro significado da palavra hebraica para “nome”. A expressão “em nome de” aparece com muita frequência na literatura rabínica no contexto de transmissão de uma tradição. (…) Aqueles que estão reunidos por amor de seu mestre aprendem a doutrina em seu nome. Um terceiro aspecto interessante da palavra “nome” é que tanto a expressão “no lugar” quanto a palavra “nome” reaparecem em Êxodo 20:24: “Em todo lugar onde eu fizer recordar o meu nome, virei a ti para te abençoar” (FLUSSER, 2002: 59. Grifos meus). Amém.

Igualmente, revela-se um mistério da excelsa eucaristia instituída por Jesus na Última Ceia: “E tomou um pão [A Palavra que sustenta], deu graças, partiu e deu-o a eles, dizendo: Isto é o meu corpo que é dado por vós. Fazei isto em minha memória”. E, depois de comer, fez o mesmo com a taça, dizendo: “Essa taça é a Nova Aliança em meu sangue, que é derramado por vós (Lc 22: 19-20)”. O Mestre torna-se ressurrecto através de sua palavra, pelo Vinho vivificada – tornada compreensível. Sentimos pulsar em nós a presença dessa vida menosprezada, martirizada e bem-aventurada.

NOTA: quanto ao ponto de interrogação no final da última estrofe, sigo orientação da zeladora d’O Cruzeiro, Percília Matos, à minha pessoa. Faz sentido analizando a estrofe. Se o corpo do velho Mestre está “desprezado ao relento”, estaria igualmente a sua memória em nosso pensamento? Melhor seria que não estivesse, principalmente em nossas ações!

 

PISEI NA TERRA FRIA E A PARÁBOLA DO GRÃO DE MOSTARDA

“O reino dos céus [a Verdade] é semelhante a um grão de mostarda [discreta], que um homem [o Mestre] tomou [recebeu] e semeou [ensinou] no seu campo [o discípulo]. Embora seja a menor [humilde] de todas as sementes, quando cresce [revela-se] é a maior das hortaliças [evidencia-se] e torna-se árvore [símbolo da vida], a tal ponto que as aves do céu [os discípulos libertos] se abrigam em seus ramos [refugiam-se nos ensinos (doutrinas)] (Mt 13: 31-32. Colchetes meus).

Sendo o Mestre a própria Doutrina do Reino, entrega-se a terra e sob a luz do sol e o orvalho da lua transforma-se em vida prodigiosa, a árvore sob a qual repousam e se alimentam seus discípulos. Cabe frutificá-la. Amém.

 

PISEI NA TERRA FRIA E O EVANGELHO DE TOMÉ

 

Disse Jesus:

Se a carne foi feita por causa do espírito,

Eis o que é maravilhoso,

Mas se o espírito foi feito por causa do corpo,

Eis o que é a maravilha das maravilhas.

Quanto a mim, fico maravilhado pelo seguinte:

Como esse Ser que É

Pode habitar nesse nada?

 

(Dito 29 na tradução de Jean-Yves Leloup).

 

Jesus, socrático, não afirma que o espírito foi feito por causa do corpo. Ele conjectura em uma proposição e ponderação filosófica. Faz algum sentido a suposição? Apenas se o corpo for a razão que testemunhe o poder anímico de Deus: “E o Eterno Deus formou o homem (Adám) do pó da terra, e soprou em suas narinas o alento da vida e o homem tornou-se alma viva” (BÍBLIA, 2006: 12). Há um milagre passível de compreensão: aquilo que se vê e nada é transparecendo aquilo que não se vê e tudo é – divina transfiguração na luz de uma miração.

Prevendo a queda, Deus criou o espírito com tal requinte de sutileza, que coube inclusive na densidade em que me enclausurei. Um dia, quando estava nu, o Paraíso me escapou. Cai, sofri e nas vidas que vivi agasalhei-me com muitas roupas – vesti trajos de reis e andrajos de mendigos. O Paraiso ainda existe, pois aprendi novamente a me despir e simplesmente ser na finura do que me salva.

Damos graças à existência, como alma vivente, no Vinho vivificada, do Mestre que nos ensina através de sua eterna Palavra (Pão da Vida)! Amém.

 

Link para o estudo do hino 3, Ripi: https://evangelhodejuramida.com.br/hino-03-ripi/

 

FOTO (Altino Machado): túmulo de Mestre Irineu ladeado pelos túmulos dos companheiros Leôncio Gomes da Silva (Presidente) e José Francisco das Neves (Conselheiro).

 

BIBLIOGRAFIA

 

ARMSTRONG, Karen. A Bíblia: Uma Biografia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007;

BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém: nova edição, revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2002;

BÍBLIA. Português. Bíblia Hebraica: baseada no hebraico e à luz do Talmude e das Fontes Judaicas. Tradução de David Gorodovits e Jairo Fridlin. São Paulo: Sêfer, 2006;

CARIOCA, Jairo. Vovô Irineu: todos vão se recordar e começar do abc. Santa Luzia: Editora Cristo Consolador, 2023;

FLUSSER, David. O Judaísmo e as Origens do Cristianismo. Volume 3. Rio de Janeiro: Imago, 2002;

MARTINS, Cleo. Nanã: a senhora dos primórdios. Rio de Janeiro: Pallas, 2008;

MILES, Jack. Cristo: Uma Crise Na Vida de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 2002;

O EVANGELHO DE TOMÉ. Traduzido e comentado por Jean-Yves Leloup. 8ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 2004;

REVISTA DO CENTENÁRIO: edição comemorativa – 100 anos do Mestre Irineu. Rio de Janeiro: Editora Beija-flor, 1992;

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