Hino 66 – São João

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INTRODUÇÃO

Nos primeiros anos de fundamentação do Daime, o Mensageiro de Maria Damião indica a proeminência de João Batista: “Se conformem meus irmãos/E não se levem na ilusão/Olhem para a casa/A casa de São João” (3:5). Em outras palavras, mediante uma das acepções da palavra “casa”, estamos diante da ordem (dinastia, linhagem) de São João. O Amor Divino de Antônio Gomes da Silva acrescenta, enaltecendo, a ordenação de celebrá-lo: “O Divino Pai foi quem deu/E não tem quem possa tomar/mandou ele [o Mestre] e seus irmãos/A São João festejar…” (23:3).

Mestre Irineu, no quinto ano de seu ministério, acatou: na casa de Maria Damião, de 23 para 24 de junho de 1935, às 18:00 h tem início, com o Terço, o primeiro hinário do Daime, sentado, sem farda e sem instrumentos musicais, cantando-se os nove hinos disponíveis: cinco do Mestre, dois de Germano, dois de João Pereia e um de Maria Damião, repetidos três vezes cada um, em ordem cíclica, sempre recomeçando do primeiro hino (NASCIMENTO, 2005: 75). Nos hinos do Mestre, estava incluso Refeição, cantado apenas no intervalo, três vezes antes e depois da farta ceia servida a base de um sortido cardápio regional (MAIA NETO, 2003: 96). Levaria mais de dez anos para que o Mestre nos presenteasse a ode esotérica São João, homenagem ao iniciador de Jesus. Convido-os a um profundo mergulho (lit. batismo) neste mistério joanino.

 

SÃO JOÃO ERA MENINO

SÓ VIVIA NAS CAMPINAS

PASTORANDO AS SUAS OVELHAS

PREGANDO A SANTA DOUTRINA

 

A PARÁBOLA: HISTÓRIA E METÁFORAS

A referência a São João menino, que também justifica o ícone, origina-se de duas fontes. A primeira é a tradição católica romana, que no dia 24 de junho comemora o nascimento do santo (VARAZZE, 2003: 33). A escolha desse dia remonta ao Evangelho de Lucas 1, 23-26, a partir do qual ficamos sabendo que João era seis meses mais velho que Jesus. Como a tradição católica – por convenção litúrgica – festeja o nascimento de Jesus no dia 25 de dezembro, celebra-se o de São João seis meses antes. A segunda referência é o Benedictus, o cântico de Zacarias, também eternizado no evangelho lucano: “Ora, tu também, menino, serás chamado profeta do Altíssimo; pois irás à frente do Senhor, para preparar-lhe os caminhos, para transmitir ao seu povo o conhecimento da salvação, pela remissão de seus pecados” (Lc 1, 76-77). O que foi cumprido por João através da santa doutrina do batismo, no Daime rediviva pela imersão (com expansão) na consciência.

Mas se considerarmos – e veremos à frente – “campinas” e “ovelhas” como metáforas, podemos entender “menino” como imagem da pureza de São João. Na voz de Jesus, seu mais eminente discípulo: “(…) Se não vos converterdes [a herança doutrinária de João!] e não vos tornardes como as crianças, de modo algum entrareis no Reino dos Céus” (Mt 18,3). Antes, como precursor, “João Batista esteve no deserto pregando um batismo de arrependimento para a remissão dos pecados” (Mc 1, 4). A doutrina de arrependimento de João amalgama-se à conversão proposta por Jesus, ou nas palavras dos comentaristas da Bíblia de Jerusalém: “Esse pesar [arrependimento], que se refere ao passado, vem normalmente acompanhado de uma “conversão”… pela qual o homem se volta para Deus e compreende uma vida nova [renascimento]. Esses dois aspectos complementares de um mesmo impulso da alma não se distinguem sempre no vocabulário…” (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002: 1706).

Essa é a doutrina da qual fala o hino, descrita e incluída no Evangelho de Marcos como “Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1, 1), pois a doutrina do batismo “(…) É o sacramento primeiro e principal que nos introduz no mistério e na vida de Deus” (DICIONÁRIO TEOLÓGICO, 1988: 94). A doutrina do batismo é a pedra fundamental do edifício doutrinário cristão. Todas as outras doutrinas são frutos da grande árvore batismal semeada pelo santíssimo João. O Daime é a seiva dessa árvore!

NOTA: um esclarecimento necessário, através do filósofo brasileiro Huberto Rohden: “João não mergulhava (batizava) crianças, porque não havia ainda a crença em pecado original [doutrina sistematizada por Agostinho no séc. IV.]. Mergulhava pecadores adultos que se confessavam pecadores e estavam dispostos a se converter para uma vida melhor. Não era o mergulho nas águas do Jordão que os libertava dos seus pecados, mas a conversão interior já realizada, e da qual a cerimônia do mergulho era apenas um símbolo exterior” (ROHDEN, 1990: 137).

 

SÓ VIVIA NAS CAMPINAS

O Antigo Testamento, tradução João Ferreira de Almeida, cita em Gn 13, 10, “as campinas do Jordão” comparando-a ao “jardim do Senhor”. Os tradutores da Bíblia de Jerusalém grafam no mesmo versículo “Planície do Jordão”. De modo que, além do âmbito geográfico, metaforicamente, a expressão “Só vivia nas campinas” simboliza uma sublime retidão, pois a palavra “campina(s)” equivale à planície (sem altos e baixos) onde a vista alcança o horizonte da realização divina, consequência natural do batismo redentor, a equidade. Em 1278, um exegeta dominicano chamado Raymundus Martini, comentando o livro bíblico de Zacarias 4:7, publicou: “(…) E por que está dito: “uma campina”? Porque Ele decidirá com equidade, e está escrito (Is 11:4): “Com justiça julgará os pobres, e decidirá com equidade em favor dos mansos da terra”” (FLUSSER, 2001: 27. Vol. 2.).

Segundo a Bíblia Hebraica traduzida diretamente para o português, à luz do Talmud e das fontes judaicas, Isaías (40, 3-4) profetizou: “No deserto clama uma voz: ‘Preparai um caminho para o Eterno (pelo qual voltarão os cativos), aplanai, no ermo, uma estrada para o nosso Deus (que os conduzirá).’ Toda depressão será elevada e todos os montes e colinas serão rebaixados; os caminhos tortos serão alinhados e os rugosos, nivelados(BÍBLIA, 2006). Mais uma vez, Antônio Gomes da Silva observa: “Ele faz outro convite/Para todos seus irmãos/Conseguindo esta harmonia/Para o dia de São João” (29:6). Sinonímia: campina, equidade, justiça, harmonia, batismo, santa doutrina…

 

PASTORANDO AS SUAS OVELHAS

Se “menino” simboliza pureza, o primeiro versículo traz outras metáforas dentro de uma bela parábola, pois observa-se nos Evangelhos que a palavra “ovelha” é sinônima para discípulo: “Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem” (Jo 10: 14). A boa-nova de Germano Guilherme confirma: “O vosso Filho está no mundo/Com suas ovelhas ele é bom pastor” (48:2). Nesse contexto, “pastorando suas ovelhas” significa “guiando seus discípulos” através da santa doutrina da imersão na consciência, o batismo, do grego baptismós, que significa, justamente, “imersão” (BATISMO, 2009). Com arrependimento e conversão.

Segundo o professor de Oxford, Andrew Welburn, escrevendo sobre o batismo dos essênios, “O batismo não era o ato de penhor que é comum nas igrejas dos dias de hoje mas uma real submersão, experimentada como uma morte e um renascer para uma vida mais elevada. O iniciado passava a conhecer a si mesmo como um “filho da Luz” engajado na guerra cósmica contra os poderes das trevas” (WELBURN, 1991: 24).

 

O MENINO YOCHANAN

É aqui, quando o recém-citado autor alude aos essênios, que entra em cena o pequeno Yochanan Ben-Z’khayah, o filhinho do sacerdote Zacarias e Isabel. Fala-se da meninice e da juventude do bem-aventurado temporão em apenas um enigmático versículo lucano, que a Bíblia de Jerusalém anuncia em negrito e itálico como Vida oculta de João Batista”: “O menino crescia e se fortalecia em espírito. E habitava nos desertos, até o dia em que se manifestou a Israel” (Lc 1, 80). Sabemos que os pais do futuro profeta eram muito idosos, a ponto do próprio Zacarias, segundo Lucas, confessar no templo diante de um anjo:  “Pois eu sou velho e minha esposa é de idade avançada” (Lc 1, 18).

Segundo o doutor René Laurentin, estamos (…) No seio de uma família sacerdotal que a tradição situa em Ain Karin, a cinco quilômetros de Jerusalém. Zacarias não era um dos permanentes do templo. Era sacerdote de aldeia. Não fazia parte da aristocracia de Jerusalém, mas honrava-se de poder servir no templo durante duas semanas por ano, de acordo com a vez de seu grupo (Lc 1, 18, que confirmam Josefo e o Talmude)” (LAURENTIN, 2004: 10). A pergunta que se faz, baseado nas duas perícopes de Lucas referenciadas (1, 80; 1, 18): sendo os pais muito idosos e, por razões missionárias, necessitando morar relativamente perto de Jerusalém, o jovem João teria “crescido e se fortalecido em espírito” sozinho no deserto? Não parece razoável. René Laurentin fornece uma pista quando define João Batista como “Asceta e mártir, situa-se na conjunção do sacerdócio e do profetismo, de Qumran e de Jesus Cristo” (p. 115). O que é “Qumran” e o que esse nome estranho tem a ver com João Batista e a profecia de Isaías 40, 3-4 citada no estudo do verso Só Vivia Nas Campinas?

Segundo o professor James Tabor, “João não foi o primeiro a ouvir essa Voz [da profecia] e a atendê-la desse modo. Cem anos antes, os judeus que conhecemos pelo nome de essênios leram aquele mesmo versículo em Isaías e, literalmente, se mudaram para o deserto da Judéia, perto do Mar Morto, a fim de viver em um pequeno assentamento chamado Qumrã, onde escreveram os Manuscritos do Mara Morto” (TABOR, 2006: 142-43). Segundo Mateus 3, 1-3, tradução da Bíblia de Jerusalém, João era habitué da localidade: “Naqueles dias, apareceu João Batista pregando no deserto da Judéia e dizendo: Arrependei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo. Pois foi dele que falou o profeta Isaías, ao dizer: Voz do que clama no deserto: preparai o caminho do Senhor, tornai reta [“campinas”] suas veredas”. Os comentaristas da referida Bíblia, acrescentam na nota (“f”) sobre o deserto da Judéia: “Região montanhosa e deserta que se estende entre a cadeia central da Palestina e a depressão [vale] do Jordão e do Mar Morto(BIBLIA DE JERUSALÉM, 2002: 1706).

O historiador judeu do primeiro século, Flávio Josefo, que conheceu Qumrã, relata que os essênios “Adotam os filhos dos outros em idade em que estes ainda são permeáveis aos ensinamentos. Eles os tratam como se fossem filhos deles próprios e os formam segundo os costumes que os caracterizam” (LAURENTIN, 2004: 38). Há uma boa pista de que Zacarias, bastante idoso, possa ter entregado seu filho aos cuidados da seita do Mar Morto. Quem a traz é o doutor David Flusser e sua reconhecida expertise na transição do judaísmo para o cristianismo. Estudando os Manuscritos do Mar Morto, Flusser descobriu semelhanças estruturais entre o Benedictus, cântico profético proclamado por Zacarias em Lucas 1, 67-79, e um hino guerreiro essênio preservado no Pergaminho da Guerra (FLUSSER, 2000: 153-167. Vol. 1.)

Ao estudar, ainda que superficialmente, os costumes essênios, é inegável a incrível semelhança com o modo de vida e os ensinos de João Batista, a começar pela capacidade de sobreviver em uma região inóspita: “O menino crescia e se fortalecia em espírito. E habitava nos desertos…” (Lc 1, 80). E o menino era cuidado e iniciado na espiritualidade essênia? É provável. Tornou-se asceta, vegetariano, comunista e apocalíptico, além de usar conceitos essênios, como veremos no elencar comparativo que segue.

Vivendo e crescendo em meio aos monges essênios, o ascetismo está evidente. Quanto ao vegetarianismo, os essênios “(…) Repudiam o consumo de carnes, vinhos…” (GINSBURG, 93: 20). Isso torna-se claro em duas perícopes – marcana e mateana – que abordam a dieta de João Batista: “Seu alimento consistia em gafanhotos e mel silvestre” (Mt 3, 4; Mc 1, 6). Como assim? Houve um equívoco na tradução da palavra “gafanhoto”: “(…) Uma antiga versão hebraica de Mateus insiste que “gafanhotos” é uma tradução grega errada para uma palavra hebraica que significa bolo de algum tipo, feita de uma planta do deserto…” (TABOR, 2006: 149). O prestigiado Comentário Bíblico São Jerônimo esclarece que planta é essa: “Na tradição posterior, João Batista transformou-se em um modelo para os monges, que não deviam comer carne; uma vez que os gafanhotos eram um tipo de carne, eles foram reinterpretados como vagens de alfarroba” (VIVIANO, 2018: 144).

O monumental Comentário Bíblico Adventista (Vol. 5), no subtítulo Notas Adicionais ao Capítulo 3 [do Evangelho segundo Mateus], na nota 1 fornece um extenso estudo sobre essa questão, do qual seleciono estes trechos: “De todas as tradições, a mais segura é a que sustenta que João Batista comia a fruta [alfarroba] da Ceratónia Silíqua [alfarrobeira]… Essa árvore, ainda cultivada na Palestina, frutifica uma vagem dura em cujo interior se encontram sementes comestíveis. (…) As alfarrobas, chamadas em árabe de jarrub, são utilizadas como alimento pelos pobres e para o gado. (…) A alfarroba se chama em alemão Johannisbrot, “pão de João”, e a árvore que a produz é Johannisbrotbaum, “árvore do pão de João”. (…) É necessário assinalar que Ellen White, ao falar de João Batista, destacou que sua comida frugal, de origem vegetal, era uma reprovação à glutonaria que prevalecia naquela época” (COMENTÁRIO BÍBLICO, 1960: 321-22).

Nota digressiva: Ellen G. White foi uma afamada e profícua escritora adventista, cujo um de seus livros, Lar Ideal (14ª edição de 1967), pertencia a biblioteca de Mestre Irineu, mostrando sua abertura – prova de humildade – a ensinamentos de diversos seguimentos religiosos. Vide, a seguir, a foto da xerox do livro com assinatura do Mestre na última página, que guardo com muito carinho em minha biblioteca.

 

 

Interessantíssimo descobrir que o Documento de Damasco, pertencente aos Manuscritos, “(…) Especifica que os gafanhotos [alfarrobas] devem ser consumidos aferventados ou assados” (LAURENTIN, 2004: 59).  Ainda sobre a dieta do precursor de Jesus, Lucas revela uma profecia de que o menino anunciado “(…) Será grande diante do Senhor; não beberá vinho, nem bebida embriagante…” (Lc 1, 15). René Laurentin afirma que “(…) Também os essênios de Qumran não bebiam vinho, mas tirosh, um suco de uva não fermentado” (p. 59).

E quanto ao mel? Segundo os professores e pesquisadores do cristianismo primitivo, Sincha Jacobovici (judeu) e Barrie Wilson, baseado nas obras dos escritores do primeiro século, Plínio e Fílon, e em outras fontes e argumentos que não cabe citar aqui, “Suspeitamos que os essênios se viam como reis abelhas da Torá… Tanto Plínio como seu contemporâneo Fílon notaram que os essênios que viviam nas margens do mar Morto eram criadores de abelhas” (JACOBOVICI & WILSON, 2015: 144-45). O epíteto “reis abelhas” tem a ver com a crença de Israel como a Terra Prometida que “mana leite e mel” (Êxodo 33, 3, por exemplo).

Em relação ao linguajar, especificamente no que tange a alguns conceitos, também encontramos correspondência aos essênios. É o caso do uso da palavra “árvore” para designar homens. Segundo Mateus 3, 10, João anunciou que “O machado já está posto à raiz das árvores e toda árvore que não produzir bom fruto será cortada e lançada ao fogo”. Jesus adota a didática de João e, em Mateus 7, 17-20, compara o homem de bem a uma árvore boa que dá bons frutos. Segundo John M. Allegro, um dos desbravadores oficiais dos Manuscritos do Mar Morto, “(..) Os essênios não foram os únicos a considerar as árvores da visão como homens em geral, e eles próprios em particular” (ALLEGRO, 1979: 55). Mestre Irineu replanta essa doutrina quando, no hino 60, Laranjeira, verseja: “Laranjeira carregada de laranjas boas/Assim é alguma pessoa…” (60: 2-4). O mesmo recurso metafórico é usado por Juramidã através da sacerdotisa Maria Damião: “Eu sou uma árvore sombreira/Assim como um coqueiro…” (16: 1). Inclusive existe um hino essênio que proclama: “(…) E as árvores sobranceiras cobriram a terra. Nesse dia, os Filhos da Luz entoarão um novo cântico…” (SZEKELY, 1997: 250).

No que diz respeito à comunhão de bens, “Os essênios proibiam o acúmulo de tesouros sobre a Terra, como Cristo (Mt 6: 19-21). Os essênios exigiam de todos que quisessem juntar-se a eles que vendessem todas as suas posses e as dividissem entre os irmão pobres; o mesmo fez Cristo (Mt 19: 21; Lc 12: 33). Os essênios tinham todas as coisas em comum, e escolhiam um dos irmãos como despenseiro para administrar a bolsa comum; o mesmo faziam os cristãos primitivos (At 2: 44-45; 4: 32-34; Jo 12: 6; 13: 29)” (GINSBURG, 1993: 28). Esse modelo comunista e, portanto, que se opunha ao nefasto imperialismo romano e a cumplicidade saduceia que definhava o povo endividado, está explicito em uma ordem de João Batista, imediatamente após trovejar a ameaça da machadada: “Quem tiver duas túnicas, reparta-as com aqueles que não tem, e quem tiver o que comer, faça o mesmo” (Lc 3, 11).

Por fim, o senso apocalíptico. Segundo o teólogo César Carbullanca Núñez, estudioso dos Manuscritos, retratando o contexto religioso vivido pelos essênios, “O tempo presente está dominado pelo príncipe das trevas e é caracterizado pelo “domínio da injustiça” (I QS 4: 19-20). Contudo, é um tempo limitado; pois Deus “fixou um fim para a existência da injustiça” (I QS 4:18)” (NÚÑEZ, 2017: 157). João Batista, após atemorizar o povo com a iminência de uma divina machadada, profetiza em tom apocalíptico referindo-se a Jesus: “A pá está na sua mão: limpará sua eira e recolherá seu trigo no celeiro; mas, quanto à palha, a queimará num fogo inextinguível” (Mt 3, 12). René Laurentin considera o versículo um “símbolo do juízo final” (LAURETIN, 2002: 64). David Flusser complementa: “Não obstante, com base nas tradições preservadas sobre ele, temos a impressão de que João Batista reativou a agressividade apocalíptica primitiva da ideologia essênia, porque ele chegou à conclusão de que “agora está posto o machado à raiz das árvores” e a ira que virá está próxima” (FLUSSER, 2001: 163. Vol. 1).

Em que pese evidências cabais da relação entre os essênios e João e Jesus, em algum momento estes tornaram-se dissidentes dos sectários do Mar Morto. Outra vez, referencio a premiada obra O Judaísmo e as Origens do Cristianismo: “Parece que João sofreu influência direta das doutrinas essênias, mas não permaneceu na seita por causa de diferenças doutrinais. É evidente que ele se recusou a aceitar o ponto de vista de que a salvação seria restrita aos membros de uma seita e condicionada pela aceitação de uma rígida disciplina. De acordo com João Batista, havia apenas uma condição para a salvação – o batismo -, e sua teologia do batismo era semelhante, ou mesma idêntica, à teologia dos essênios. Assim, Batista não exigia das pessoas que batizava que abandonassem sua posição na sociedade e se afastassem de seu modo de vida anterior [vide Lc 3, 12-14]” (FLUSSER, 2001: 217-18. Vol. 1).

Jesus segue as pegadas de João Batista, e em Lucas 16, 8-9, tradução João Ferreira de Almeida, faz uma crítica aberta ao separatismo extremo da seita: “(…) Porque os filhos do mundo são mais hábeis na sua própria geração do que os filhos da luz. E eu vos recomendo: das riquezas de origem iníqua fazei amigos…”. Uma vez mais, vamos usufruir do cabedal desse conceituado acadêmico, que foi (é falecido) professor da Universidade Hebraica de Jerusalém: “Os Manuscritos do Mar Morto demonstraram que os essênios empregavam a denominação “os filhos da luz” como sua autodesignação favorita. Mais tarde, no segundo estrato do cristianismo, os próprios cristãos afirmavam que eram os verdadeiros filhos da luz” (FLUSSER, 2001: 174. Vol. 1.). Para melhor compreendermos o dito de Jesus, Flusser explica, em relação aos essênios, que “Sua pureza ritual específica não permitia que eles entrassem em contato com a riqueza impura do mundo exterior. (…) Eles era obrigados a “manter-se à parte dos filhos da perdição, a abster-se da riqueza impura da iniquidade…”” (p. 177). Portanto, sem que tivessem negado muitos dos ensinamentos essênios, o diferencial dos revolucionários João e Jesus foi adicionar amor universal, com mais acolhimento e misericórdia em suas perspectivas salvacionistas…

 

PREGANDO A SANTA DOUTRINA

O AMOR ELE EMPREGOU

ATRÁS DELE VEIO JESUS

TODA VERDADE AFIRMOU

 

Ano que vem, estudaremos essa estrofe em detalhes. Agradeço sua presença e atenção no espírito justo e acolhedor do senhor São João! Viva!

 

AGRADECIMENTOS:

À amicíssima Thálita Vanessa Pinheiro, estudiosa de gnosticismo cristão, pela arte (@thaav_arts) e por chamar a atenção sobre a tradução da palavra “gafanhoto”; despertando-me o interesse em pesquisar o assunto, graças a Deus disponível em minha biblioteca.

A Luís Pavão Luba e sua companheira Andreza Pavão, queridos amigos missionários domiciliados na longínqua e gélida Glasgow (Escócia), por me presentearem com o livro O Evangelho Essênio da Paz, arrolado nas “Referências”, a seguir.

 

REFERÊNCIAS:

ALLEGRO, John Marco. O Mito Cristão e os Manuscritos do Mar Morto. Sintra, Portugal: Publicações Europa-América, 1979;

BATISMO. Dicionário da Língua Portuguesa. In: Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Objetiva, 2009;

BÍBLIA. Português. Bíblia Hebraica. Tradução de David Gorodovits e Jairo Fridlin. São Paulo: Sêfer, 2006.

BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém: Nova Edição, Revista e Ampliada. São Paulo: Paulus, 2002.

BÍBLIA. Português. Bíblia de Referência Thompson: Antigo e Novo Testamento. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Vida, 2007.

COMENTÁRIO BÍBLICO ADVENTISTA DEL SÉPTIMO DÍA – TOMO 5: Madrid: Publicaciones Interamericanas, 1960;

DICIONÁRIO TEOLÓGICO O DEUS CRISTÃO. São Paulo: Paulus, 1988;

FLUSSER, David. O Judaísmo e as Origens do Cristianismo, Volume I. Rio de Janeiro: Imago, 2000;

________. O Judaísmo e as Origens do Cristianismo, Volume 2. Rio de Janeiro: Imago, 2001;

________. O Judaísmo e as Origens do Cristianismo, Volume 3. Rio de Janeiro: Imago, 2002;

GINSBURG, Christian D. Os Essênios: Sua História e Doutrinas. São Paulo, SP: Pensamento, 1993;

JACOBOVICI, Sincha; WILSON, Barrie. A Vida Privada de Jesus. Lisboa, Portugal: Clube do Autor, 2015;

MAIA NETO, Florestan J. (Org.). Contos da Lua Branca. Rio Branco, AC: Fundação Elias Mansour, 2003;

NASCIMENTO, Saturnino Brito do. No Brilho da Lua Branca. Rio Branco, AC: Fundação Garibaldi Brasil, 2005;

NÚÑEZ, César Carbullanca. Demonologia e Teodiceia na Apocalíptica Judaica e em Qumran. In: VIERA, Fernando Mattiolli (Org.). Manuscritos do Mar Morto: 70 anos da descoberta. São Paulo: Humanitas, 2017;

ROHDEN, Huberto. A Mensagem Viva do Cristo. São Paulo: Martin Claret, 1990;

SZEKELY, Edmond B. O Evangelho Essênio da Paz. São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix, 1997;

VARAZZE, Jacopo D. Legenda Áurea: vidas de santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003;

VIVIANO, Benedict T. O Evangelho Segundo Mateus. In: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. (Orgs.). Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. São Paulo: Paulus, 2018;

WELBURN, Andrew. As Origens do Cristianismo. São Paulo: Best Seller, 1991;

Respostas de 8

    1. Um coqueiro não dá muita sombra, mas um coqueiral… “Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles” (Mt 18, 20). Abraço fraterno. Agradecido por sua presença! 

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